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#46 - NÓSTOS GADAMÉRICO

  • Foto do escritor: viniciuscagnotto
    viniciuscagnotto
  • 17 de nov.
  • 3 min de leitura
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Há retornos que não voltam ao ponto de partida. Cada passo de volta traz consigo, como uma bola de ferro presa ao calcanhar, o vestígio de tropeços (ou de desvios biomecânicos) que impedem linhas retas, de tal forma que não é mais possível percorrer o estreito. Algo se alargou na via. O mapa foi expandido, rasgado ao meio (para caber mais), de tal forma que, encarando tal fissura, não se sabe mais como emendá-la. Ora, tal preocupação seria absurda. Afinal, neste ponto, o entendimento é outro: o entendimento é o da expansão. A compreensão emancipou-se de um deslocamento que não se fecha sobre si mesmo. O retroceder, neste caso, nunca é uma regressão. Aquele quadro, que já mais é uma memória fosca e dura, ganhou pinceladas frescas. A volta, como evento, apresenta um desconhecido àquele que havia partido. O tempo passou, sim, mas pouco importa tal percepção, uma vez que a estagnação é, também, fenômeno temporal. Importam, de fato, os atravessamentos de sentidos. De “outros” sentidos. Este fenômeno, sim, garante nova interpretação da bússola.


Norte já não é norte: é bifurcado.

Sul é um leque que abana ex-certezas.

Leste e Oeste ganham tanta diversidade que, muitas vezes, acabam sendo um só.


É claro que, conceito por conceito, tal engrandecimento da compreensão, descrito com tamanha pompa, ressoaria como um êxtase recompensador, algo que encaminha para a verdade ou, pelo menos, para alguma resposta maior. Inevitável refletir, porém, que talvez não seja o viajante o questionador. Como poderia ser? Um interrogador, decerto, não seria capaz de inquirir assertivamente a respeito de um contexto que ainda lhe é desconhecido. É nesse ponto que se divide claramente, diante dos próprios olhos, a diferença entre enxergar e compreender. Ao espiralar numa longa escada, não se pode sentir, sob os pés, o último degrau estando ainda no primeiro, por mais que se possa, nitidamente, vê-lo. A afirmação contrária, resultante de uma possível arrogância para com o metaentendimento (o ato de, categoricamente, afirmar que entende perfeitamente aquilo que acabou por entender durante a jornada), atuaria como uma ação magnética que desregularia a bússola a partir daí. Veja, não é que o retorno retornaria ao ponto de partida. Tal acontecimento seria o mesmo que inverter o fluxo da entropia, ou seja, impossível. O que ocorreria seria a inexistência de uma nova odisseia.


Tal ideia se torna mais clara ao se entender que, talvez, a falta de uma falta seja quem levanta a âncora. Toda falta de; toda busca por; toda pergunta; toda ambição têm grande potencial de viés. Carregam consigo uma bagagem de expectativas, uma esperança por afinidade, um desejo do conhecido, uma predisposição para conectar pontos já existentes. Tal cenário seria uma lástima para a emancipação. Quando se controlam direcionamentos, apagam-se as alternativas. Quando se anseia por respostas, limita-se nas perguntas. Compreender exige o não controle. O entendimento caminha com a não pergunta.


Logo, se fissura é o que se busca, não se deve interrogar. Deve-se permitir ser interrogado primeiro. Deve-se permitir ser atravessado pelos sentidos que tais interrogações trarão à tona. E, por “deve-se”, não se deve conceber tal termo como uma ação voluntária, já que a emancipação apenas se desenvolve em um gesto quase etéreo, invisível. Tão sutil quanto avassaladora. Trazendo consigo a sensação de que algo já não é mais como antes, mesmo que pareça que sempre esteve ali, como a própria sombra.


Essa circularidade, quando respeitada em uma eterna ignorância socrática, há de expandir o horizonte visual, tal qual o alcance da vista durante a subida de andares num arranha-céu. E, apesar da subida, é sempre possível descer ao térreo novamente. Mas o térreo já não será o mesmo térreo dentro daquele mapa rasgado, fissurado, alargado e, por vezes, remendado.


Realizado isso, retorna-se ao início de forma heroica, mas jamais ao ponto de partida.

Deixa Eu Pensar | #46 - Nóstos Gadamérico

 
 
 

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