#41 - TRIBUTO AO CAFÉ DA MANHÃ
- viniciuscagnotto
- 10 de set.
- 3 min de leitura

Ao terminar de arrumar a cama, esmagou o gato, que o observava, com carinhosidade intensa e logo se dirigiu para a cozinha.
Pão na chapa e café preto. Esse era o plano.
Assim como em todos os outros dias.
Se pôs a iniciar os preparos. Tranquilamente.
Tinha ainda um pão de ontem. Não estava enrijecido… por completo.
Nada como um pouco de calor para amolecer o coração do amido.
Enquanto elaborava milimetricamente suas duas canoas com uma faca não muito correta para pães, seu celular vibrou. Só podia ser o trabalho.
Nova mensagem no aplicativo de comunicação da empresa o mencionando diretamente.
Mas ele não notou, o momento era muito crítico para se preocupar com coisas digitais. O corte precisava ser perfeito.
E foi.
Sorriu.
Imaginou que já era tão habilidoso naquilo que o poderia repetir até com uma faca cega.
Abriu o pote de manteiga e a espalhou nas duas bandas do pão velho.
Não era ainda o momento da chapa… quer dizer, frigideira.
Ainda estava no passo do mise en place.
Se preparasse o pão agora, esfriaria até o café ficar pronto.
Então, se dirigiu aos seus apetrechos cafeísticos.
Quando tirava do armário o pó e o filtro de café, o celular tocou.
Tocou.
E ficou tocando.
Quem é que liga para alguém tão cedo?
Não fazia diferença. Nem chegou a pensar algo parecido porque nem mesmo reparou a ligação.
Estava escolhendo a xícara que usaria hoje.
Faltava uma pequena lasca de algum momento de descuído passado em um dos lados.
Mas servia como qualquer outra.
E era até uma das preferidas.
Colocou a água para esquentar.
Filtrada, claro, afinal quem quer beber cloro?
Ouviu essa pergunta retórica de alguém um dia.
Agora é a sua pergunta retórica pra si mesmo.
Enquanto caçava o suporte Melitta 102 na gaveta dos tapueres, um bem-te-vi de chapéu coco adentrou freneticamente pela janela com uma lagartixa no bico, que se debatia intensivamente numa luta digna do Peloponeso, porém sem saber que era Atenas. A derrota era inevitável. No chão, a cauda, perdida durante o duelo, dançava tanto quanto a dona.
Um épico ignorado. O foco, calmo, pertencia totalmente ao escaldar do filtro e ao pesar do pó de café.
Enquanto a água quente, mas não fervente, escorria pelo filtro, acendeu a sua boca favorita do fogão, sudoeste, onde já se encontrava a frigideira, que aguardava ansiosa pelos pães.
Esse agora exigia sincronia.
Coar o café e chapear o pão de modo que ambos finalizem no mesmo instante.
O maior desafio que retornava diariamente com certo entusiasmo.
Quem procurasse, não encontraria preocupação nenhuma em seu semblante.
Muito pelo contrário. Esperava, sem angustia, por aquele momento.
Colocou a primeira banda do pão na frigideira, com a temperatura mais pra menos do que pra mais, e magicamente sacou uma mini frigideira, uma filhota da primeira, e a posicionou sobre o pão, o prensando com leveza.
Quando se virou para iniciar o coar do café, a porta da sala irrompeu estrondosamente e dois meliantes invadiram o cômodo com punhais em punho enquanto eram perseguidos por vigilantes que escondiam o rosto com meias-calças marrons portando luvas de boxe numa corrida de pega-pega desenfreada que bagunçava todos os móveis e derrubava vasos e televisão.
Mas o café já estava a um quarto de jarra e era hora de finalizar o primeiro pãozinho e começar a esquentar o segundo.
Ficou muito orgulhoso de si mesmo.
A aparência era exatamente do que jeito que vinha praticando há tempos.
Crostinha no limítrofe alfandegário entre “crocante perfeito” e “início de queimado”.
Repetiu o mesmo processo de prensa suave e paciência ativa na segunda barquinha e o resultado foi tão idêntico à primeira, que não conseguiria dizer qual estava mais próximo do seu gosto pessoal.
Refletiu aquele Paradoxo Sorites por um segundo enquanto preparava a mesa com todos os itens necessários: pãezinhos quentinhos, jarrinha de café fumegante e xícara de hoje.
No primeiro gole, entendeu que também tinha passado naquela disciplina.
A realidade e a expectativa se abraçaram em paixão calorosa.
Quando os lábios tocaram a xícara pronta para derramar o segundo gole, meteoros flamejantes choveram céu abaixo devastando metros de terrenos que encontravam pelo caminho, ruas, casas, prédios. Parte do telhado que cobria seu quarto e banheiro foi atingida de tal modo que estilhaços de telha e cimento voavam por toda a casa, levantando uma quantidade incalculável de pó, que formava agora uma densa neblina, mais parecida com as encontradas em serras litorâneas durante o inverno. De dentro dessa névoa suspensa no ar, corriam desesperados velociraptors em gritos agudos, como que pedindo ajuda por suas vidas.
Olhou o relógio.
“Vou me atrasar”, talvez tenha pensado.
Inabalado, completou a xícara com mais café e mordeu o pão bem na beirada com a crosta de manteiga mais crocante.
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