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#40 - BOLINHOS DE CHUVA

  • Foto do escritor: viniciuscagnotto
    viniciuscagnotto
  • há 5 dias
  • 4 min de leitura
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— Poisé, como eu tava te falando, o Tião era um baita mestre de obra.

— Verdade, seu Tião? Não lembro de você comentar.

— Ô se era! Foi quando nos encontramo. Conta pro doutor, Tião, que cê tava todo sujo de cimento pra pedir minha mão pro papai.

— É mesmo, é?… Faz tempo…

— Não lembra, velho?

— Lembro, lembro… Era jovem, né?

— Mas claro! Tamo junto há mais de quarenta ano. Velho que não era. Velho é agora.

— Calma, dona Clarice. Tião deve tá cansado. E eu não quero atrapalhar, só dei uma passada porque os exames dele saíram e queria conversar com vocês.

— Atrapalha nada, homem. Segura essas papelada aí enquanto eu passo um cafezinho.

— Dona Clarice, não se incomode…

— Que nada, é um prazer recebê o doutor aqui. Tião, conta aí como era a vida nas construção pro doutor. Já volto.

— Pois é, doutor, trabalhei muito. Disso eu sei.

— Do que você se lembra?

— …

— Qualquer coisa da juventude, seu Tião. O que vem à mente?

— Me lembro de umas música que ouvia. Viola. Eu arranhava, sabia? Cê gosta de viola, doutor?

— Se bem tocada, gosto sim. Mas prefiro guitarra.

— Eita. Então gosta é de barulho, é?

— Que isso, seu Tião? Tem música boa na guitarra. Elvis, Chuck Berry. Ouvia com meu pai.

— Não tô lembrado não.

— Aquela do De Volta Para o Futuro. Assim: Tã nãnãnã nã nã nã nã tã nã nã nã…

— Minha nossa! Como eu gostava dessa música. Eu e Tião dançava ela nos baile tudo. Tião era bom dançarino. Me rodopiava pra lá e pra cá. Tempo bom… Óia aqui o cafézinho. Fica à vontade, doutor.

— Obrigado… Muito gostoso, dona Clarice. Mas deixa eu falar dos exames do Tião…

— Calma, doutor! Acabou de chegar e já quer falar de médico e remédio. Deixa nóis aproveitá. Não é sempre que tem visita em casa. Né, Tião?

— Isso. É isso. Fica à vontade, doutor.

— Doutor, já deixei esquentando o óleo, vou fritar uns bolinho de chuva.

— Dona Clarice, não precisava… Era só uma visita rápida pra ver o Tião.

— Faço questão. Tião, conta pro doutor a história da dança, dos militar. Essa é boa, doutor. Já volto.

— Então, aprendeu a dançar no exército, seu Tião?

— Oi?

— Serviu o exército?

— Ah, sim! Acho que sim. Todo homem serve, né? Obrigação.

— E gostava?

— Devia gostá. Na verdade nem me lembro direito. Sei que tinha corneta. Tocava cedo pra acordar. Era um som bom.

— Eu não servi. Dispensado. Senão a Medicina ia ter que esperar. Como você tem se sentido nos últimos dias, seu Tião?

— Tô bem, fio. Completa a xícara aqui de café.

— Pois não… E tem saído pra caminhar com a dona Clarice?

— Tomou café, doutor?

— Tomei sim, seu Tião.

— Doutor, tá quase pronto os bolinho. Lembrei que o Tião me disse outro dia que o amigo dele, Geraldinho, era igualzinho ocê. E é verdade, óia ali na estante, tem uma foto dele.

— Essa aqui, dona Clarice?

— Isso! É da época que Tião velejava pra pescar pros armazém da vila. Ele e Geraldinho era sócio. Voltava com as bacia cheia. Lembra, Tião?

— Deixa eu ver…

— E o Geraldinho, ainda tem contato?

— Geraldinho partiu já faz uns ano.

— Sou eu na foto, Clarice?

— Claro que é, homem. Não mudou nada. Esse do lado é Geraldinho.

— A gente precisa ligá pra vê comé que ele tá.

— Ô, homem, não fala besteira.

— Calma, dona Clarice. Era exatamente sobre essa situação que eu queria conversar.

— Calma, fio, que os bolinho vão queimar.

— Eu vou com você.

— Não se incomoda, doutor, eu resolvo.

— Dona Clarice, eu trouxe os exames pra conversarmos sobre a situação do seu Tião.

— Eu sei, fio. Mas vamo comê os bolinho primeiro, vamo?

— Dona Clarice, é importante.

— Doutor. O Tião foi meu companheiro por mais de quarenta ano. Ele foi bom pra mim. Sempre carinhoso, preocupado. A gente sempre se cuidou. Fizemos muita coisa. Passeamos, dançamos, pescamos, construímos essa casa. Tião é conhecido por aí. Já até chamaram ele pra ser político de terno. Não quis não. Disse que era coisa de vagabundo só ficá falando e não fazê nada. Eu dei um bejo nele quando recusou. Ajudamos a cidade nóis mesmo, do nosso jeito. Tião é homem bom. E eu vou cuidá dele, não importa exame nenhum.

— Eu entendo, dona Clarice. Mas pode ser que você precise de auxílio. Até pensar numa casa de repouso onde ele possa ser bem atendido e…

— Doutor. O que resta do meu marido tá ali naquela sala, lutando pra lembrar das coisas que faz ele ser quem ele é. Se ocê vai abrir esses exame pra dizer que daqui pra frente ele não é mais o Tião mestre de obra, pescador, violero, dançarino, amigo, meu marido… Então faz isso depois do bolinho de chuva.

— …

— Vem. Já tão pronto. Vamo leva pro Tião.

— Temo visita, Clarice?

— Temos, Tião. O doutor veio visitá ocê. Fiz uns bolinho de chuva.

— Ô, doutor. Que honra a visita. Toma um café?

— Tomo sim, seu Tião. Bom te ver também.

— E tá tudo bem? Veio por quê?

— …

— Ele veio fala dos seus ex…

— Eu tava de passagem e resolvi parar pra ver como vocês estavam. Soube que gosta de música, seu Tião. Vamos ouvir algo?

— Não precisa falar duas vez. Vou pô uma viola procê ouvir.

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