#32 - JANTAR COM THANATOS
- viniciuscagnotto
- 30 de jun.
- 8 min de leitura

Pegou o copo de cristal à sua frente, suspirou e entornou o que sobrava do uísque caro que vinha prolongando nos últimos vinte minutos. Sem pensar muito, direcionou seu olhar entediado para seus vizinhos no estabelecimento. Alguns executivos, lendo folhas timbradas enquanto ouviam um jovem, sem muito rigor estético, falando sem parar. Nenhum prato, apenas taças sempre cheias. “Parece que essa venda vai sair”, pensou, sem muita surpresa.
Do outro lado do salão, uma mesa com mais pessoas em volta do que o tamanho parecia suportar. Fato irrelevante para o humor daquela “festa”. Seu olhar aguentou cinco segundos daquela alegria desinibida. “Para quê?”
Muitos casais estavam espalhados pelo recinto. “Clichê de romancistas.” Refletiu rapidamente como era fácil identificar os estágios de um relacionamento. Toques? Sorrisos? Olhos brilhando? Embrionário. Conversas sérias? Brigas? Emoções envelhecidas? Intimidade ou, com muito mais probabilidade, desprezo iminente. Silêncio? Celular na mão? Desgaste. De qualquer forma, o ambiente escuro de clima ameno, somado à bela vela acesa sobre a toalha de mesa de linho azul-marinho, garantia um local perfeito para paixões exageradas. “Daria tudo para não presenciar um pedido de casamento esta noite.” Foi durante esse pensamento agoniante e esperançoso que sua distração foi interrompida.
— Lugar interessante! — disse sua visita recém-chegada, enquanto pendurava seu casaco na cadeira, como se estivesse em qualquer boteco. — Seria impossível adivinhar esse interior apenas olhando a fachada simplista — sorriu e sentou-se. — Atrasei muito?
Do outro lado da mesa, retribuiu o sorriso.
— Eu sabia que se atrasaria. — Sinceridade. — Está com fome?
— Morrendo! Já pediu algo?
— O menu degustação. Estavam apenas esperando você. Quer beber algo?
— Deixa eu ver as opções.
Fitou com atenção a pessoa à sua frente, que no momento todos os problemas se resumiam a decidir como se embriagar nos próximos minutos.
— Por que decidiu vir? — perguntou, afinal, com curiosidade.
Um olhar confuso lhe encarou.
— Hum… não sei responder, senti como se não tivesse escolha. — Aquilo não apaziguou a inquietude. — Foi um convite bem convincente, mas me disseram que… — Nesse momento, trouxeram o couvert. — O QUE É ISSO?
Como se estivessem em um banquete de alguma realeza europeia de cinco séculos atrás, a mesa foi inundada com inúmeras opções de pães salgados e doces, frios, patês, tortas, biscoitos, manteigas, amendoins, amêndoas, frutas cristalizadas e o dobro disso tudo em itens que eram irreconhecíveis, porém não menos apetitosos.
— É assim mesmo. Experimente um pouco de tudo, talvez você não tenha outra chance.
— Mas é muita coisa, eu nem sei o nome de tudo que colocaram aqui. — De repente, sentiu um mal-estar. — Me parece um desperdício.
— É um desperdício porque você não sabe o que são? — Perguntou com a voz intrigada. — Vai deixar de experimentar algo por não conhecer?
— Me refiro à quantidade. Claro que vou experimentar, mas quase tudo vai voltar pra cozinha.
“Que desperdício, realmente.” Fitou a visita com certa decepção, mas entendia que ainda estavam no início.
— Sempre que você tem muitas opções entra em desespero assim? — provocou.
— Eu apenas não sei o que fazer com tudo isso. Parece demais. Não sei expressar exatamente o que sinto em relação a “muitas opções” — sinalizou as aspas com as mãos, de forma caricata. — Acho que me dá vontade de chorar, acredita? — Uma resposta ingênua, ignorando totalmente a malícia da pergunta.
Uma cantoria estridente iniciou na mesa dos “festeiros”, incomodando praticamente todos os clientes e funcionários. O gerente olhava de longe, nervoso, questionando a si mesmo, covardemente, se deveria pedir para que se comportassem e arriscar a perda da mesa que mais faturaria naquela noite. Não precisou agir, no entanto, quando o olhar, antes focado naquela que era sua importante visita, se virou para a mesa barulhenta. Um olhar calmo, porém determinado, como se quisesse participar daquela turma ao mesmo tempo que desejasse vê-la ruir. Subitamente, um dos integrantes, o que cantava mais alto, decidiu que tinha que ir embora. Foi o gatilho para o início da fase das despedidas suprimidas, aquele momento de um encontro entre amigos e familiares onde todos já estão cansados e loucos para voltar para casa, mas ninguém se pronuncia para que não sejam rotulados de estraga-prazeres. Um comportamento que apenas o ser humano, no alto do seu córtex pré-frontal, poderia racionalizar, pois não poderia ser mais absurdo. De fato, começaram a se despedir enquanto aguardavam a conta. Com satisfação, sua atenção voltou novamente para a pessoa que degustava pela primeira vez sabores nunca antes imaginados.
— Parece que você está gostando das descobertas. — Por uma fração de segundo, se divertiu com aquilo.
— É esquisito, não sabia que eu era uma pessoa gastronomicamente curiosa. — Riu com a boca cheia de panqueca com mel. — Está tudo muito interessante. Mas admito que ainda prefiro o pãozinho com manteiga — disse enquanto passava com a faca o segundo no primeiro.
Enquanto observava a satisfação com que aquele indivíduo à sua frente mastigava algo tão simples, lembrou de algo importante.
— Você esqueceu sua bebida.
— É VERDADE! — Quase engasgou, o que seria trágico sem nada líquido na mesa para ajudar a descer o resto de comida que poderia se entalar na garganta. — Não decidi ainda o que pedir. Me passa, por favor, o cardápio novamente.
Quando ia entregar o cardápio, chegaram quatro garçons de mãos muito ágeis. Enquanto dois retiravam os restos do couvert, sem mesmo perguntar se poderiam, os outros dois já colocavam no lugar o que era a entrada daquele menu degustação. Com olhos arregalados pela surpresa da troca de pratos, executada tão abruptamente, a visita viu uma mesa agora repleta de sopas, saladas, canapés e até algumas porções de batata frita e mandioca. Mais uma vez sentiu certa confusão com alguns pratos que não conhecia. Porém, mesmo diante de tanta diversidade, entristeceu.
— Poxa, eu queria mais pãezinhos — disse a visita, cabisbaixa.
— Eu sei que queria — sorriu e se dirigiu ao garçom. — Traga mais alguns pães, por favor.
Chegaram rápido e quentinhos. Não entendeu o porquê, como nunca entendia mesmo, mas gostou de ver aquela pessoa sorrir novamente, pronta para misturar naqueles pães recém-assados todas as novas opções da mesa.
— Você diria que é uma pessoa “apegada”?
— A pão? — Gargalhou enquanto rasgava um pedaço com as mãos. Tinha entendido a pergunta. — Talvez. Eu tenho muita certeza do que eu gosto e me incomoda abrir mão, mas ao mesmo tempo gosto de manter uma certa abertura para gostar de novas coisas, entende?
— Isso pode ser contraditório, muitas vezes algo novo pode chegar como uma substituição.
— É por isso que tenho minhas certezas, meus “valores” — aspas gestuais novamente — bem definidos. — Molhou o pão no prato cheio de uma das sopas que haviam chegado e jogou na boca. Não terminou de engolir para perguntar de forma acusatória: — Você está me julgando?
— Nem um pouco. Apenas tentando entender como uma pessoa que mal conhecia metade das opções do couvert e um terço das opções da entrada pode ter opiniões tão absolutas. — “Talvez um pouco ríspido demais”, mas não se sentiu mal, principalmente depois de perceber que a visita não estava se esforçando tanto para experimentar aquilo que não conhecia da mesa.
— Vai entender. Talvez eu já tenha aprendido aquilo que me faz bem, aquilo que me deixa feliz. E com certeza o julgamento não entra nessa lista. — Completou, também com rispidez, intencionalmente encerrando essa discussão. Mudou de tom num piscar de olhos. — O mais interessante é que, apesar de comer tanto, ainda estou com fome. — Sorriu.
— Nada de sede, no entanto. — Lembrou, cantarolando.
A visita arregalou os olhos.
— Não é possível! A sopa me enganou, mas ainda quero uma bebida, vou pedir qualquer coisa, senão vai demorar.
A visita olhou ao redor, procurando os garçons. Não viu nenhum. Seus olhos pararam em uma situação que ponderou se considerava divertida ou constrangedora: três executivos estavam dormindo com folhas em frente aos seus rostos, enquanto outros dois ouviam entediados aquele mesmo jovem provavelmente repetindo alguma coisa que acreditava ser muito importante, julgando pelo ânimo desproporcional com que transmitia.
— Aquilo deve estar muito chato — riu, enquanto observava com total atenção o desenrolar daquela situação, esquecendo completamente do motivo pelo qual havia começado a sondar o ambiente.
Aquela atenção da sua visita para a outra mesa incomodou. Curiosidade? Interesse? Ansiedade? Não importava. Voltou seu olhar para a mesa dos executivos com o mesmo semblante de antes. O brilho nos seus olhos era dúbio: alguns diriam que se solidarizava com o jovem, outros apostariam que apenas queria fazê-lo parar. Quase que instantaneamente os três que dormiam acordaram. O jovem parou de falar, organizou os papéis à sua frente e agradeceu a “atenção” dos colegas de mesa. Todos apertaram as mãos e começaram a se preparar para irem embora.
Quando voltou a fitar a pessoa à sua frente, que havia perdido o interesse naquela reunião que se encerrava, chegaram os mesmos quatro garçons de antes. Substituíram os pratos numa velocidade recorde. À frente dos dois agora se apresentava o prato principal, que não era apenas um prato, mas algumas opções muito bem trabalhadas. Dessa vez a visita não se viu tão desconcertada com a quantidade ou diversidade das opções. Simplesmente olhou para algumas delas, escolheu uma ou duas e começou a comer.
— Está uma delícia — disse, com a boca cheia — mas acredito que se eu misturar com esse aqui vai ficar ainda melhor.
Direcionou seu garfo para um terceiro prato, mais afastado. Teve que se esticar para espetar o que desejava e, num ato de desequilíbrio, pela posição desconfortável, à meia dobra de joelho, deixou o garfo cair no chão. Ambos rapidamente se abaixaram para colher o talher perdido. Quase se tocaram, mas um dos ágeis garçons já estava se levantando com ele em mãos. Sem dizer nada, se virou para levar o garfo que havia caído de volta para a cozinha. Uma crise de riso brotou na mesa. Não na visita.
— Não havia entendido você como uma pessoa tão “ambiciosa” — disse, em meio à gargalhada, gesticulando as aspas invisíveis com as mãos.
— A verdade é que minha satisfação já se deu! Não acredito que quero comer mais — respondeu a visita num tom emburrado. Se incomodou com aquele deboche todo — O que é tão engraçado?
— Nada — respondeu, recompondo-se. — Não fique assim, poderia ser pior. Você poderia ter derrubado a mesa inteira. — Segurou um segundo acesso de riso.
— Antes tudo no chão do que na minha frente sem um garfo para continuar comendo — olhou em volta, com ansiedade. Onde estava o garçom com um novo garfo?
“A satisfação não está tão completa assim, afinal. Que desperdício”, pensou, mas sem crítica.
A visita se recostou na cadeira, abatida, quando avistou os quatro garçons de antes se direcionando para a sua mesa. Chegaram mais rápido que antes e substituíram os pratos requintados por uma única opção para a sobremesa. Um doce simples, sem requinte algum.
— Olha, com honestidade, não sei se aguento. Estou me sentindo diferente — disse a visita.
— Vale a pena.
A visita deu duas garfadas sofridas, mas admitindo, pela feição, que realmente valia. Assim que baixou a colher, bocejou.
— Que canseira. Não podemos levar o resto pra viagem?
— Infelizmente, não. Mas podemos ir, se quiser.
— Sim, preciso descansar, parece que estamos aqui há muito tempo já.
Levantaram-se, deixando o resto da sobremesa para trás.
Estendeu a mão. A visita olhou com interesse, sorriu e a segurou. Ao mesmo tempo, um jovem em outra mesa se ajoelhou, tirou uma aliança do bolso e pediu a sua companhia em casamento.
“Para quê?”
A visita nem sequer prestou atenção. Apenas fitou seus olhos, ganhando novamente a atenção.
— Vamos?
— Vamos — lembrou de algo. — Você deve estar com sede.
— Deixa, eu bebo algo em casa. Vamos indo — começou a literalmente puxar aquela mão fria em direção à porta.
“Que desperdício.”
Antes de se deixar ir, virou para a mesa, inclinou-se até a vela acesa…
…E soprou.
Deixa Eu Pensar | #32 - Jantar com Thanatos
Comentários