#29 - O JARDIM DE EPIGATUNO
- viniciuscagnotto
- 2 de jun.
- 7 min de leitura

— Cadê todo mundo? — Humberto chegava de mansinho, observando os arredores. Nunca era o primeiro a chegar, mas também nunca havia faltado a nenhum encontro desde a inauguração.
O velho gato, único presente, continuava esfregando a pata esquerda, lambida, no rosto. Ronronava baixinho.
— Quem sabe? Mas não se acanhe. Encontrei um banquete na esquina. Alguém largou um pedaço inteiro de carne. Sirva-se.
Humberto, com a barriga que roncava tal qual um cão velho, não se deteve. Mas, quando foi agarrar a carne seca, um estrondo o alarmou e ele correu para se esconder atrás do outro gato. O velho Epigatuno parou por um instante para observar. Eram apenas os jovens Florência e Cacho, que sempre chegavam fazendo bagunça, numa brincadeira de caça interminável de gata-e-gato. Atrás deles vinha Gorgonzola, mas este se direcionava para o banheiro, conhecido como Majestoso Sanitário.
Era uma creche antiga, abandonada, esquecida pelos bípedes que ainda passavam diariamente pela fachada, sem nem prestarem atenção à fantástica pintura colorida de flores nas paredes. Um desperdício de tinta.
O tempo não havia cuidado bem das estruturas metálicas da extensa área aberta, que agora era o ponto de encontro dos bichanos; mas havia cultivado diversos tipos de plantas e flores, que só poderiam crescer sem a intervenção dos bichos-que-miam-esquisito. Por esse motivo, foi batizado de O Jardim.
A localização não era das melhores, a uma quadra inteira do conjunto residencial mais próximo. A caminhada era longa e a travessia incluía uma larga avenida, mas a grande caixa de areia trazia um alívio para uma possível pressa fisiológica que, para muitos gatos, só poderia ser satisfeita em seus castelos. No Jardim, no entanto, todos compartilhavam a grande caixa.
Nem todos tinham um castelo próprio. Epigatuno era um desses. Vivia no Jardim e em seus arredores, mas não o chamava de seu, apesar de todos (a seu contragosto) o nomearem por completo como O Jardim de Epigatuno. Bom, não criava caso com isso. Saía pouco, apenas para coletar refeições para si e para os encontros. Adorava os encontros. Eram os momentos mais felizes dos seus dias. Mas ainda faltavam alguns participantes.
— Epigatuno — gritou Gorgonzola do Sanitário, terminando de enterrar seus dejetos — a Kora não vai conseguir vir hoje. Os empregados dela saíram e esqueceram de deixar a janela aberta. Ela estava bem chateada. A vi pelo vidro usando o altar fofo de dormir como caixa de areia.
— Que pena! Espero que amanhã ela consiga vir. Então, vamos começar. Nossos atrasadinhos, como de costume, devem chegar já já. Hoje, quero compartilhar com vocês algumas ideias que pensei nos últimos dias, desde que iniciamos nossos encontros aqui no Jardim. Humberto, não vá engasgar. Coma devagar, meu amigo.
— É que está muito bom e faz dias que só como migalhas.
— Eu já disse que você pode passar no meu castelo quando quiser, Humberto — disse Florência — tenho comida a perder de vista.
— Eu já tentei te visitar, mas é tudo muito assustador. Sempre que eu vou, tem alguma coisa estranha acontecendo. Teve um dia que estavam sugando seus pelos no chão e fazia muito barulho. Fiquei com medo de que você tivesse sido engolida. No outro, um batuque alto que dava pra ouvir do outro lado do quarteirão. Achei bem perigoso.
— Bobeira — retrucou a dona do castelo — meu empregado apenas apanha meus pelos no chão para não se enroscarem na minha comida. Aquela coisa é inofensiva. Fora isso, ele gosta de se fechar em um quarto com uns tambores. Eu fico ordenando que ele abra a porta, mas ele não me ouve com a barulheira. De qualquer forma, é tudo muito tranquilo. Eu te garanto.
— Que coincidência — se alegrou Epigatuno — é exatamente sobre isso que minha primeira ideia tem a ver. Não temas os barulhos desconhecidos. O mundo propaga barulhos que são desconhecidos para nós. Mas eles não são para NÓS. Eles apenas estão aí, existindo. O trovão no céu não é direcionado pra mim ou pra vocês. O sugador de pelos não quer interagir conosco. Ele não tem por que fazer isso. Tem coisas melhores a fazer, como sugar os pelos. Os bichos-que-miam-esquisito às vezes miam alto e sem parar. Eu sei que pode atrapalhar o sono, mas, no final, se eles quisessem se comunicar conosco, miariam no nosso miado. Então, não precisamos nos preocupar com essas coisas. É irracional viver com esses medos e preocupações. O melhor caminho é tentar viver em paz, independentemente dos barulhos.
Humberto ouvia boquiaberto, com um pedaço de carne entre os dentes. Tinto havia chegado no meio da explicação, atrasado como sempre. Porém, gato astuto como era, quis logo dar sua opinião.
— Epigatuno, parece muito simples falando desse jeito, mas eu entendo nosso amigo Humberto. Somos das ruas e vivemos enfrentando perigos o tempo todo, sempre preocupados se aquela sombra segura que encontramos em um dia ensolarado será a última que nos aconchegará. O medo dos barulhos desconhecidos talvez esteja ligado ao medo de virar saudade.
— Amigo Tinto, sua colocação é excelente e vai de encontro com a próxima ideia que compartilharei no dia de hoje. Não temas o fim do ronronar. Não devemos ter medo do último suspiro. O sono eterno não é nada para nós, que existimos para ser vívidos. A nossa existência é contrária ao silêncio total. Enquanto existimos, cochilamos e acordamos. Quando não acordarmos, já não existimos mais. Isso significa que não há motivo para sofrermos de ansiedade por uma situação que não nos cabe experienciar, já que não seremos mais o que somos.
— Espera um pouco — interrompeu Cacho, que brincava com o rabo de Florência — “Último ronronar”? Estamos muito longe disso, nós temos sete vidas, certo? Pelo menos foi o que o velho Virgulino disse outro dia.
Epigatuno caiu na gargalhada.
— Jovem Cacho, Virgulino acredita em algumas coisas bem esquisitas. Mitos que vêm sendo passados há muitos e muitos dias. Eu não penso que precisamos de sete vidas. Basta uma, bem vivida. E isso me leva para outra ideia que pensei. O necessário está…
CLANG!!!
Todos deram um pulo quando as correntes enferrujadas se romperam com o peso do roliço Ervilha. Apressado e esbaforido, saltou do telhado direto sobre a tábua de madeira que as correntes sustentavam. Elas não tinham chance contra o seu esforço de anos para manter a forma que tinha.
— Ervilha, você está bem? — alguém perguntou.
— Estou bem, estou bem. Desculpem o horário. Meu empregado atrasou minha comida e eu não conseguiria vir com fome. Mas agora cheguei, podemos começar. Humberto! Isso é carne?!
Todos se olharam. Epigatuno riu.
— Venha, Ervilha. Sente-se mais perto. Eu estava pronto para falar sobre algo que você talvez goste de ouvir. O necessário está ao alcance da pata.
— Já concordo! — aprovou Ervilha. Epigatuno continuou.
— Quero falar sobre o prazer. Cada vez mais me convenço de que o mais importante para uma boa vida é mais simples do que pensamos que seja. O prazer ao qual me refiro nada tem a ver com excessos — Ervilha, que mordia a carne seca, a soltou e começou a lamber as patas, fingindo que não era com ele. Todos sorriram.
Epigatuno queria articular melhor sua tese.
— O que eu quero dizer é que o importante para a felicidade, a meu ver, são as simplicidades que a vida nos apresenta. Não são os brinquedos caros, as torres de veludo luxuosas, as estantes altas e os montes de petiscos gordurentos que comemos sem nem estar com fome. Os prazeres verdadeiros estão nas caixas de papelão largadas, na carne simples encontrada ao acaso e compartilhada, num canto seco ou numa boa sombra, como nosso amigo Tinto havia comentado antes, na liberdade de ir e vir pelas ruas e telhados e na amizade, que é parte fundamental desses encontros. Eu jamais trocaria nossos encontros por nenhuma coleira de cristais ou roupinhas que os bípedes adoram nos presentear.
Todos refletiram sobre aquela lição. Para alguns soou como uma provocação, já que viviam sim uma vida de luxo e que, nesse momento, tentavam entender se ela garantia aquele prazer do qual Epigatuno estava falando. Para outros, soou como utopia, afinal, a vida na rua não garante luxos e a linha entre simplicidade e miséria ainda era difícil de identificar. Tinto se pronunciou.
— Como podemos viver buscando essa felicidade em um prazer simples se lutamos diariamente para conseguirmos sobreviver? E não é sobre deixar de viver que estou falando agora. A dor dos machucados que sofremos quando buscamos abrigo ou estamos em fuga ou a dor de perder irmãos e do abandono.
Epigatuno já sabia que esse questionamento chegaria. Ele também era um gato das ruas e o era por muito tempo. Havia experimentado brevemente a vida com empregados e decidiu fugir quando entendeu que seu castelo era mais prisão que lar.
— Caro amigo Tinto, para responder seu questionamento eu trago a minha última ideia. Lamba-se com paciência. Sim, amigo Tinto, as dores existem e a minha sugestão é que não devemos entender a dor como um mal. Se a dor é breve, ela é facilmente suportável, agora se ela for longa e constante, devemos encontrar nos prazeres, formas de alívio. Os machucados podem ser intensos, mas se curarão em algum momento breve, basta paciência e lambidas de cuidado. Se a dor é profunda, como a da saudade e a do abandono, devemos recorrer aos prazeres e às memórias como suporte para apaziguar o peso. E aqui eu recorro a ideia anterior de prazeres: boas amizades e bons momentos. Dessa forma é possível atravessar os períodos de dor de uma forma mais estável. O importante é evitar que o desespero tome conta. Isso fará com que essas dores se tornem menos ameaçadoras.
Os gatos estavam em silêncio, refletindo.
Gorgonzola, que tinha a melhor audição do grupo, virou-se rapidamente para a cerca de ferro quebrada que era um acesso fácil para terrestres, mas que os gatos não usavam, já que sempre chegavam ao Jardim pelo telhado.
— Estou ouvindo passos.
Todos ficaram atentos.
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— ACHEI VOCÊS! — a grade chacoalhou como um trovão quando a matilha dos Caramelos Salgados invadiu o Jardim numa nova tentativa de pegar seus arquinimigos da vizinhança — VOCÊS NÃO VÃO ESCAPAR DESSA VEZ!
Os gatos olharam para Epigatuno, que sorria.
— CORRE, GATADA!
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