#22 - CARTA AO PALHAÇO
- viniciuscagnotto
- 13 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de abr.
uerido profissional do entretenimento,
Quando me contaram dos seus males, me apressei a lhe redigir uma mensagem.
Há muito não conversamos. Sinto falta dos seus risos verdadeiros e suas brincadeiras animadas. Daquele ambiente confortável, onde o susto, quando existe, é para alegrar e não para oprimir.
Apesar da falta de presença, quase como mil léguas de afastamento, indiferente até agora a qualquer movimento em sua vida, somos vizinhos, então acredito que seja prudente expor o que penso sobre toda a sua situação.
Meu amigo Palhaço, soube recentemente que seu espetáculo está falindo.
É de uma tristeza enorme presenciar, mesmo sem a devida importância, como o seu auge há tempo é nostálgico.
Toda aquela maquiagem colorida e exuberante que destacava bem as expressões dos seus atos originais, hoje são definitivamente apenas uma máscara, tentando esconder em uma gota bem azul pintada logo abaixo dos olhos, lágrimas reais que manchariam o mais fino cosmético.
Sinto muito pelo seu espetáculo estar em ruínas, mas admito que era de se esperar.
Ora, não me leve a mal, mas seu novo show era insustentável. E não pela narrativa midiática, que caçava a cada linha uma renovada atenção através de punchlines gastos e truques de marketin… Quero dizer, de mágica.
A realidade é que insustentável era a sua performance. O seu esforço. A rotina exaustiva que cada vez mais sugava de ti seu principal produto: a Felicidade.
Seria impossível continuar, você já estava à beira de um colapso. Quanto mais você se dedicava para trazer animação e entusiasmo para seu público, mais difícil era garantir as mesmas palmas em uma segunda ocasião. Afinal, hoje existe a mentalidade da reinvenção e seus espectadores andam enjoando cada vez mais rápido, não é verdade?
Veja bem, a culpa não é inteiramente sua, talvez nem “meiamente”. Hmm, acho que essa palavra não existe, querido Palhaço, mas você me entendeu. Na realidade, existe um grande espetáculo acontecendo acima de nós que emprega a todos para atuar em um show contínuo. Você não tinha como saber, mas esse espetáculo muda as regras da audiência e controla a plateia de forma formidável. Não havia muito o que se fazer.
Eu sei que você acreditou que poderia dar conta. Entregar cada vez mais, se esforçar cada vez mais, trabalhar, trabalhar, trabalhar. Afinal, “The Show Must Go On”.
Mas como seria possível continuar essa caminhada de propósito pessoal sem o combustível que você mais ingeria: a diversão?
As coisas mudaram, meu nobre Palhaço, e você entendeu tudo errado.
Não é à toa que o cansaço te alcançou.
Lembra quando rir era alegria? Hoje é apenas uma métrica.
O afeto virou um Call To Action.
Quantos likes são necessários para se sentir acolhido?
Difícil saber, ainda não descobrimos como calcular a ilusão.
E você, nesse novo sistema, virou um avatar de uma promessa que nunca se cumpre.
Dorme pouco, produz muito, e ainda acha que a piada nunca está boa o suficiente.
Meu irmão Palhaço, você virou gerente da sua própria exploração.
Mas olha só, se servir de algum consolo, por mais trágico que pareça, você não está sozinho. Ninguém está mais rindo. Não de verdade.
Estão todos batendo palmas por costume. De forma algorítmica.
O espetáculo do cotidiano é vazio, é uma abstração, não existe de verdade.
E você, na tentativa de tirar algum valor desse palco estéril, virou figurante da própria tragédia.
Sorriso fixo, coluna torta, conta no vermelho.
Sabe o que é pior?
Ninguém te obriga. Você se obriga.
Você se pressiona, se cobra, se finge forte.
É escravo voluntário, com crachá de empreendedor, seu próprio chefe, cobrando sua produtividade com voz doce e motivacional junto com quatro xícaras de café e algumas cápsulas milagrosas.
Amigo Palhaço, não estou apontando o dedo para te culpar.
Claramente você foi exposto ao discurso mais abominável da atualidade. Aquele com frases como “seja a melhor versão de você” ou “trabalhe enquanto eles dormem” ou mesmo “se você sonhar, pode realizar”.
A armadilha é muito bem armada pelos donos do circo, aqueles que comandam o picadeiro e decidem o valor da entrada. A promessa de se tornar também um dono de espetáculo é tentadora, eu sei, mas eles não querem sócios. Deixa eu te contar algumas verdades.
Não há mais plateia. Só existe concorrência.
Não há mais espetáculo. Só ficou a atuação falsa.
Não há mais circo. Só há trabalho interminável.
Então, amigo Palhaço, ao invés de retocar a sua maquiagem para esconder o cansaço,
deixe-a rachar.
Pare de performar. Pare de produzir.
Canse-se e silencie-se.
Pelo menos por um momento, onde será possível reorganizar suas emoções.
Entenda que você não precisa do nariz vermelho para ter algum valor.
Entenda que o seu valor está além de qualquer espetáculo.
Me despeço aqui com a esperança de não ter sido muito duro com você, meu nobre amigo.
Desejo de todo coração que esse cansaço que sente seja o que te abrirá os olhos.
Desejo ainda que consiga reerguer sua peça, aquela alegre, aconchegante, autêntica e contagiante. Sem exageros e mesmo assim, bela de apreciar, sem qualquer pressão ou opressão.
Com genuína solidariedade,
Um outro Palhaço.
Deixa Eu Pensar | #22 - Carta Ao Palhaço
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