#14 - QUANDO SIMPLIFICAR É PERDER
- Deixa Eu Pensar
- 7 de abr. de 2024
- 5 min de leitura
Quão profundo é seu entendimento sobre termos que você tem o costume de ouvir ou falar?A Ontologia é a área da filosofia que estuda aquilo que é. A existência, o ser, a realidade. Vivemos tentando classificar coisas, dar nomes, definir termos, dar sentido ao que nos rodeia. E a ontologia surge para agrupar esses entendimentos através da razão, dando algum tipo de fundamento com base em similaridades, sejam físicas ou conceituais.
A primeira obra do Organon, o conjunto sobre Lógica elaborado por Aristóteles, se chama Categorias, e é onde o filósofo grego desenvolve uma espécie de organização de grupos baseada nessas semelhanças entre entidades.
Um ser humano pertence à categoria Seres Vivos. Um cachorro e um leão também. Mas apenas o ser humano e o cachorro pertencem à categoria de animais onívoros, já que o leão é estritamente carnívoro.
Pode parecer simples com um exemplo tão genérico, mas esse modo de pensar foi observado e colocado no papel no século IV a.C. e ainda é utilizado hoje em praticamente todas as disciplinas que conhecemos. A complexidade de definições pode ser exponencialmente elevada devido a novas descobertas científicas ou mudanças de contextos socioculturais. O que classifica um planeta, ou um átomo, ou uma lei constitucional. O que difere um elemento químico do outro? O que difere um astro do outro? O que é um homem? O que é uma mulher?
Categorizar, mesmo quando não temos clareza semântica de algo, é natural para ser humano, e instintivamente presente em outros animais, principalmente a partir de percepções e experiências. Se você está numa floresta, come uma fruta desconhecida e passa mal, automaticamente você a classifica como tóxica e não voltará a comê-la. Conseguiriamos diferenciar um cachorro de um leão mesmo sem nunca termos visto nenhum deles antes ou nunca ter sido apresentados ao conceito do que é cada um dos animais.
É claro que muitas vezes utilizamos algumas categorizações erradas no dia a dia a fim de uma certa velocidade na comunicação e a partir de um senso comum, como chamar praticamente todos os bichos que tem asas de pássaros, sendo que na realidade a categoria pássaros, do nome científico Passeriformes são apenas um grupo dentro da categoria Aves, geralmente classificados como aves cantoras. O beija-flor, o pica-pau, o gavião, o avestruz, o pombo, nenhum deles são pássaros, mas todos são Aves. Chamar esses animais de pássaros não necessariamente tem um grande impacto em uma discussão cotidiana, a não ser que você seja um biólogo, claro.
O problema das categorizações, no assumir significados a partir de um termo guarda-chuva, é quando conceitos são generalizados, tratados de forma simples demais, principalmente quando talvez merecessem reflexão mais profunda e particular. É quando o impacto da má interpretação pode levar a perdas de significado e propósito, deixando rasa uma atribuição macro que no final não significa nada objetivamente. E assim, pode acabar abrindo margem para definições bem subjetivas.
Não é de hoje que a sociedade simplifica termos em nome de uma visão marketeira, lucrativa ou até manipulativa, porém ultimamente é possível perceber até um fascínio, um surto coletivo em relação a termos subjetivos como se fossem algo concreto e até mensurável.
E já trazendo uma possível polêmica, porque não apontar um termo muito adorado no mundo corporativo: a Inteligência Emocional.
O que é inteligência emocional?
O que é ter ou não ter inteligência emocional?
O que é desenvolver sua inteligência emocional?
Quase como um sinônimo de maturidade, a inteligência emocional surgiu com o objetivo de classificar em algum tipo de grau a compreensão e a reação das pessoas diante de suas emoções. Com uma pitada de autoridade científica, a qual encantou o consciente coletivo, passou a ser adotada integralmente como uma soft skill, termo moderno para uma habilidade comportamental subjetiva que ninguém sabe ao certo como avaliar, mas que é imprescindível para o desenvolvimento pessoal e sucesso na carreira profissional.
Mas como podemos colocar dentro de uma única caixa todas as emoções de um indivíduo e suas reações perante a elas? Quem define o comportamento de uma pessoa emocionalmente inteligente?
Uma definição tão rasa e reducionista sempre terá dois pesos e duas medidas. A inteligência emocional, como produto de uma cultura que visa produtividade, lucro e enquadramento social sem realmente se preocupar com o emocional, os sentimentos verdadeiros das pessoas que a integram, é classificada de forma arbitrária para os interesses de quem tem maior controle de decisão sobre outras pessoas.
A subjetividade do que seria a inteligência emocional é próxima ao critério das relações sociais de Hegel, onde ele afirma que a autoimagem de um indivíduo só se torna uma verdade social quando observada por outro indivíduo, este último, na grande parte das vezes, com algum tipo de poder em relação a todos os outros.
Cada pessoa, em cada situação, de acordo com seu emocional atual, que pode refletir diretamente de toda a sua bagagem de vida, reagirá de uma forma específica. E isso nada tem a ver com inteligência. A classificação simplista dessa inteligência faz perder toda a empatia perante as entidades envolvidas a fim de um julgamento rápido e injusto. São muitas emoções e situações diferentes para conseguir metrificar algum tipo de intelecto superior e inferior. A própria nomenclatura, "inteligência" já é uma manipulação semântica para validar uma hierarquia social.
E pra não dizer que estou apenas atacando estoicoaches e toda a cultura corporativa de "gratidão" e "resiliência" do século XXI, existe outra simplificação social que prejudica bastante muitas pessoas todos os dias com base em vieses e preconceitos: a definição de Gerações.
A batalha de gerações sempre existiu e é claro que algumas análises podem ser feitas, a grosso modo, de comportamentos entre as pessoas dessas gerações, seja ela X, Y, Z, ou qualquer uma.
Mas talvez seja precipitado assumir certezas em relação a alguma pessoa simplesmente por causa da geração que ela pertence. E isso é muito comum. Os julgamentos são automáticos, mas na realidade, apesar de fatores sociais que podem garantir algum tipo de afinidade dentro dessas gerações, existem muito mais variáveis que vão definir ontologicamente aquele ser. Experiências, oportunidades, privilégios, cultura, criação, gostos, decisões.
Simplificar o entendimento que temos de uma pessoa com base em sua geração nada mais é do que perder toda a profundidade ou ignorar toda a complexidade que essa pessoa tem a oferecer.
Talvez estejamos entrando cada vez mais em um modelo de sociedade onde, ontologicamente, o raso é o padrão. E isso é lamentável. Evitar mergulhos mais profundos em definições que parecem corriqueiras faz perder oportunidades gigantescas de entendimento e conexão com a realidade à nossa volta.
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