#13 - O FETICHE DA VIDA NÃO VIVIDA
- Deixa Eu Pensar
- 29 de mar. de 2024
- 5 min de leitura
O que você faria com toda a sua sabedoria de HOJE se tivesse 20 anos de idade novamente?
Uma maldição que veio com nosso poder de inteligência e consciência, que nos dá a possibilidade de pensar, refletir, de analisar as ocorrências da nossa vida, é a possibilidade de fantasiar situações.
Existe uma carência humana em aceitar situações passadas que não foram de nosso agrado e uma expectativa desleal e controladora de planejar situações futuras da forma mais meticulosa possível.
Quem nunca pensou coisas do tipo: “Devia ter falado isso e não aquilo”, “Devia ter feito desse jeito e não daquele”, ou então “vai ser exatamente assim, primeiro esse passo, depois esse, e está tudo aqui no papel”, “Se não for exatamente dessa forma, não vai dar certo”.
O que será que essa cobrança por reparos imaginados diz sobre nós?
O que será que essa cobrança por controle diz sobre nós?
O que será que essa preocupação com passado e futuro diz sobre a sociedade e a cultura em que estamos inseridos?
Por que exatamente você gostaria de voltar à sua juventude com a cabeça que tem hoje?
Existe até uma pergunta melhor: Quantas decisões com tanto poder de mudança você acredita que tomou e acha que poderia mudar?
Vamos dar um passo pra trás pra pensar um pouco sobre possibilidades.
Uma pessoa acorda com o despertador, ativa a soneca e dorme mais 15 minutos.
Acorda já um pouco atrasado, se levanta, toma um banho, se veste e sai correndo de casa para trabalhar.
No elevador do prédio onde mora, encontra um vizinho amigo. Bate papo por alguns segundos até o estacionamento e o lembra que a avenida principal de saída do bairro está interditada, sugere fazer outro caminho.
Chegando no trabalho vai direto pra mesa do café, onde tem alguns colegas conversando sobre um cliente.
Vai pra sua mesa e logo é chamado para uma reunião onde tem que tomar uma decisão sobre dar um próximo passo na carreira, com uma promoção para um cargo que vai tirá-lo da função que ele tanto ama executar.
Ele decide aceitar. Fica feliz e triste ao mesmo tempo, mas aceita.
Para comemorar, organiza rapidamente um happy hour com alguns colegas no fim do expediente.
Chega em casa à noite, sem sono e decide começar a assistir uma nova série.
Dorme no sofá até o próximo dia.
É muito claro nessa história que essa pessoa tomou muitas decisões no seu dia, mas qual será que foi a decisão mais importante que ela tomou?
Eu vou chutar aqui, correndo o risco de estar errado, que grande parte das pessoas diria que foi aceitar a promoção.
Mas essa é a pergunta errada.
Em filosofia a primeira pergunta seria: existe uma decisão mais importante que outra? Em relação ao quê? O que transforma uma decisão em algo importante ou não? Essa classificação foi pensada ou apenas tem um viés sociocultural? Será que crescer na carreira é tão mais importante do que a decisão de nem tomar café da manhã antes de sair para o trabalho?
Entrando na fantasia das vidas não vividas, o que seria desse dia se a pessoa tivesse levantado na hora que o despertador tocou a primeira vez? Teria mais calma pela manhã ou não? Tomaria café em casa? Será que se encontraria com seu amigo no elevador? Se não se encontrassem, o vizinho poderia ter pego o trânsito na avenida principal. Mesmo se encontrando, se não houvesse menção da via interditada, o problema para o vizinho também aconteceria. Então, como uma decisão de carreira, tão individual e tão enviesada pode ser tão mais importante que decisões que parecem menores mas que podem ter grande impacto na vida de outras pessoas, sem nem mesmo sabermos?
E se ele não tivesse aceito a proposta, se arrependeria? Ou quem sabe, à longo prazo, continuaria feliz fazendo o que ama fazer? Provavelmente não teria marcado o happy hour e comemorado com seus colegas. Que impacto isso poderia ter na noite e no futuro dessas pessoas também? Fora isso, precisa de alguma comemoração pra marcar um happy hour?
Quem sabe no dia seguinte, alguém pergunte: “vocês já viram a série x?”. Se essa pessoa não tivesse decidido assistir a noite, talvez não participasse da conversa que começaria, o que isso a faria sentir? Ou o que ela estaria fazendo se não estivesse conversando sobre esse assunto?
As possibilidades são infinitas, a todo momento estamos escolhendo o que fazer ou o que não fazer, e tudo o que acontece agora será uma base para o que acontecerá no futuro assim como o que vivemos hoje é reflexo de momentos que já foram vividos, inclusive os menores deles.
Temos a tendência de menosprezar momentos que nos parecem pequenos.
A Teoria do Caos é muito assertiva em refutar esse pensamento, quando diz que a menor das ocorrências pode afetar imensamente um resultado à longo prazo a ponto de torná-lo imprevisível.
Imagine você na primeira série, com seus 7 ou 8 anos de idade. Que impacto teria na vida que você tem hoje uma decisão de levantar ou não a mão para responder uma pergunta do professor?
A primeira coisa que vem à mente pode ser: nenhuma. Mas será mesmo?
Qual reação em cadeia uma simples mudança dessa não teria no resto de todos os acontecimentos que você viveu? Você seria a mesma pessoa, estaria fazendo a mesma coisa?
A situação complica mais quando inserimos nessa equação da vida as decisões de outras pessoas. Que impacto uma decisão que alguém fez há 10 anos tem em você hoje? Como essa sequência de ações que são tomadas diariamente por todas as pessoas do planeta, influenciam em quem você é hoje?
Indo mais longe ainda, como você acha que seria o mundo se você não tivesse nascido?
Essa reflexão está longe de ser uma pergunta egocêntrica a fim de incentivar uma importância para a vida de uma pessoa ou outra, mas apenas para refletir sobre como tirar uma peça que gera tantas variáveis o tempo todo poderia impactar nos caminhos de outras pessoas e até de uma sociedade inteira.
Então, voltando à questão inicial, por que iríamos preferir trocar toda essa complexidade que foi gerada no simples processo de viver para cortar algum tipo de caminho metafórico acreditando que se sairia melhor?
O que é “se sair melhor” quando todo o impacto que foi causado por todos os anos em que está vivo já estão dados e calculados?
Talvez o que falte, ao invés de arrependimentos e fantasias sobre caminhos não tomados, seja a clareza de entender a profundidade dos caminhos que foram tomados, e isso é bem mais complexo do que parece.
Deixa Eu Pensar | #13 - O FETICHE DA VIDA NÃO VIVIDA
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